domingo, 4 de janeiro de 2009

Pastor de Labão

Nessa altura eu tinha namorada, e escrevia num blogue textos de circunstância. Mas a vida não corria bem. Eu há sete anos à procura dela, da vida e da namorada, e ela a persistir em esconder-se. Era uma teimosia. Eu a entregar-me cada vez mais aos textos, ela a desvanecer-se cada vez mais.Um dia disfarçou-se de comentadora, atrás duma alcunha graciosa, sugestiva. E vinha assídua, calorosa, vinha sempre fiel, estava sempre na caixa dos comentários, quando lá fazia falta. Trazia a sua nota, deixava um incentivo, era a leitora melhor que pode haver.Até que não resistiu e apareceu-me no e-mail, a duras penas descobrira o endereço. Exagerou na sua admiração, e sussurrou-me, no fim, que dispusesse. Eu culpei algum amigo inconfidente e fiquei sossegado.Assim passámos a viver a três. A namorada a esvanecer-me em casa, eu a escrever textos de circunstância, e a minha fiel leitora a comentar. A própria namorada lhe sentiu a persistência - tens aqui admiradora apaixonada! - fez-me notar certa vez. De horas em quando ela aparecia no correio, porque há coisas que não cabem na caixa dos comentários. E eu deixei andar por si aquele enleio, a imaginar feitiços na literatura, a convencer-me que o verbo pode operar maravilhas.Um dia, ao fim de sete anos, acabou por dissipar-se a namorada. Foi-se embora, exasperada, por tanto se esconder. E eu abri a corte à minha admiradora, subindo a escada emotiva costumeira. Ela acompanhava-me a escalada com reticências discretas, e sugestões nebulosas, e os véus translúcidos que um bom pudor não dispensa. As coisas chegaram a aquecer, em bom rigor havia incêndio à vista.Certa noite chegaram dois e-mails, iguais rigorosamente. Um vinha da antiga namorada, o outro da virtual admiradora. Avisavam que eram ambas uma só, e vinham despedir-se para sempre.Eu sorri, pus-me a pensar na vida. Se ela não fosse tão curta, quem ficava outros sete anos era eu, a escrever num blogue textos de circunstância. Não chegariam para convencer Labão. Mas ao menos acreditava eu em feitiços da literatura. E vivia a confiar que um bom verbo opera maravilhas.







Texto de Jorge Carvalheira

Publicado aqui:http://ladraralua.blogspot.com/2008_11_01_archive.html

1 comentário:

Anónimo disse...

Canção do amor que chegou

Eu não sei, não sei dizer
Mas de repente essa alegria em mim
Alegria de viver
Que alegria de viver
E de ver tanta luz, tanto azul!
Quem jamais poderia supor
Que de um mundo que era tão triste e sem cor
Brotaria essa flor inocente
Chegaria esse amor de repente
E o que era somente um vazio sem fim
Se encheria de cores assim

Coração, põe-te a cantar
Canta o poema da primavera em flor
É o amor, o amor chegou
Chegou enfim






in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"

Vinícius de Moraes